sexta-feira, 9 de outubro de 2009

"O apelo emocional do consumo atinge todo o mundo" - Entrevista com Ana Lucia Villela07/10/2009

A IMPORTÂNCIA DO BRINCAR


Ana Lucia Villela dedica-se à infância. Mestre em Psicologia da Educação pela PUC de São Paulo, em 1994, ela iniciou um trabalho socioeducativo em uma das regiões mais carentes da cidade de São Paulo: o Jardim Pantanal. Lá, moldou e fundou o Instituto Alana, organização sem fins lucrativos que promove assistência social, educação, cultura e proteção da população em geral. Em 2005, a ONG ganhou mais uma causa pela qual lutar. Foi quando Ana Lucia despertou no Brasil o debate sobre o consumismo na infância e criou o Projeto Criança e Consumo. Depois de firmar a defesa por uma restrição efetiva da comunicação mercadológica dirigida ao público infantil, o Projeto agora amplia as discussões para apontar que os problemas do consumismo não se restringem à esfera familiar.E uma das conseqüências mais graves desse consumo desenfreado é submeter crianças a uma constante pressão de mercado. Nesta entrevista ao Projeto Criança e Consumo, Ana Lucia afirma que hoje essa cobrança tem tornado o tempo de brincar cada vez mais escasso.O que te motivou a criar o Projeto Criança e Consumo?Eu fiz Administração de Empresas na FAAP e, na época, li um artigo que dizia que os EUA estavam investindo milhões de dólares em comerciais dirigidos a crianças. Não lembro o número, mas era um valor chocante. Fiquei assustada. E, a partir desse texto, eu resolvi fazer um trabalho sobre o mercado que existia para vender produtos para crianças, que não fossem necessariamente produtos infantis. Quando eu já estava no Vera Cruz [Instituto de Ensino Superior Vera Cruz, onde fez especialização em educação infantil], escolhi como trabalho de conclusão de curso falar sobre esse tema também. Fiz um recorte de como os comerciais televisivos retratavam a criança e a conclusão foi de que a criança tinha mesmo se tornado o centro de tudo e era um alvo fácil para o mercado – bem naquela linha de crianças sendo formadas como consumidoras e não como cidadãs. Esse tema sempre me chamou a atenção. Eu dava aula e ficava muito irritada com a influência da mídia no comportamento infantil. Então, as crianças falavam “vamos brincar de Pokemon?” e eu entrava na delas. Elas começavam a brincar e eu observava que havia uma limitação: “não é assim, você não viu ontem como era? O Pokemon não faz isso!”. Ficavam circunscritas à imitação fiel do que viam e não criavam nada em cima daquilo. Isso me incomodava muito. Outra coisa que me enlouquecia era ver criança de batom, salto, bolsa, uma erotização precoce absurda. No Jardim Pantanal [bairro no extremo leste da capital paulista] vi mães gastando o salário do mês para comprar o brinquedo que o filho tinha visto na televisão. A gota d’água foi quando soube que uma mãe tinha batido muito em uma criança porque ela tinha comprado uma boneca e a menina brincou uma semana e não tocou mais. Eu já observava isso em todas as esferas sociais, mas fiquei mais horrorizada nas regiões menos favorecidas. Porque as crianças de famílias que vivem uma situação financeira mais privilegiada, de alguma forma, tinham a cultura de comer bem, de ir ao museu, de viajar. Na comunidade Pantanal isso simplesmente não existia. Não tinha um médico para orientar a alimentação da criança, não tinha lazer... Um dos principais argumentos dos atores de mercado é dizer que os limites devem ser dados pelos pais. Mas como os pais que vivem uma realidade como essa do Pantanal podem lidar com isso?Os pais também são vítimas e nem percebem. E não vejo uma diferença muito grande entre pais de situações econômicas diversas com relação ao consumismo dos filhos. Porque o apelo emocional do consumo atinge todo o mundo!. Agora, em uma região pobre, é muito triste porque o desejo é despertado e eles não podem comprar. Gastam o que não têm para comprar um produto que a criança não vai usar. Muitas vezes os pais também não sabem o valor de uma alimentação saudável para o dia a dia do filho, a criança fica mais tempo sozinha em casa com a televisão ligada. Com menos recursos e com mais exposição a essas mensagens mercadológicas, o impacto é muito maior. Isso é um fato. Mas também já encontrei mães muito esclarecidas nessas comunidades.Como combater os impactos negativos do consumismo na criança?Acho que devemos ir pelo lado positivo, de explicar, dialogar, de trazer outros exemplos. Oferecer para a criança a oportunidade de conhecer um mundo diferente daquele, de sair de frente da televisão e fazer um passeio, conhecer a cidade. Isso desperta a curiosidade e dá outras referências a ela.Como educadora, é difícil lidar com essa nova realidade das crianças? Porque não tem como impedir que elas mergulhem no mundo do “Pokemon”.Mas você pode apresentar outros mundos para elas. Se a criança está na fase de colecionar brinquedos, por exemplo, então porque só colecionar aquela boneca X? Temos de aproveitar o que tem de rico nesse universo e incentivar a descoberta de outras coleções. Então, vamos atrás do que seu pai colecionava, vamos colecionar algo em sala de aula, todo mundo junto... É preciso partir do universo deles e ir além. Nesse sentido, é importante conhecer o universo infantil?Acho importante sim. Mais importante é ensinar a criança a brincar e apresentar vários modelos de brincar. Imitação, faz de conta, jogo, brinquedo. Mas é preciso saber do que as crianças gostam, o que querem, para entender o que interessa a elas.O brincar é ensinado? Ele não é natural do universo infantil?O brincar deve ser ensinado. Não acredito que ele seja natural. O que acho é que a criança tem mais liberdade para brincar e fantasiar do que o adulto, que já está preso a regras e ao sistema. Mas a criança é ensinada a brincar desde bebê. Ela interage com o mundo brincando, mas quando ela acha graça em alguma coisa é porque, em outro momento, ela vivenciou uma situação parecida. Quer dizer, sem o mundo ao redor dela, ela não brinca. Por que o brincar é importante ao desenvolvimento humano?O brincar é fundamental por muitos motivos. Um deles é conhecer o mundo onde vivemos. A primeira coisa que a criança aprende a fazer é imitar o adulto. E quando ela fica mais velha, brinca de ser carteiro, de ser médico. Por quê? Porque ela pega tudo o que ela apreendeu da vida para brincar imitando. Essa é chance que ela tem de se colocar em vários papéis, de se colocar no lugar do outro, de planejar a brincadeira, de criar soluções e avaliar como foi a brincadeira. Outro fator importante do brincar é a socialização, porque é na brincadeira que a criança interage com outras pessoas e, assim, aprende a respeitar o outro, a seguir regras e a conviver em grupo. A vida é isso. Nós adultos, estamos sempre trocando de papel também. Você é mãe, profissional, amiga, enfim, cada hora você está em um papel. Mas, além de ser um treino para a vida adulta, o brincar é uma maneira de a criança entender como o mundo funciona. O brincar é muito amplo – brinca-se sozinho e com os outros.Quando a criança começa a entender o mundo, a perceber que está brincando?Até a criança entender que ela é um ser diferente da mãe demora cerca de um ano. Depois, ela começa a entender que faz parte de um mundo lá pelos três anos de idade. É um processo. Nesse período, a criança é egocentrada. Quando ela entra no mundo letrado é que passa a compreender mais efetivamente as coisas, pois tem mais uma ferramenta de leitura do mundo.E qual a importância da brincadeira nessa fase em que a criança já compreende melhor sua relação com o mundo?É super importante a criança começar a ter brincadeiras mais coletivas, porque cada vez mais ela vai sair daquele mundo de poucos amigos, de convivência só com os familiares, e vai ampliar o universo dela. E, para isso, ela precisa entender melhor o mundo. E para entender melhor o mundo, ela precisa fazer brincadeiras mais coletivas, jogar com várias pessoas e com regras mais complexas.Qual é o grande problema dos brinquedos eletrônicos?Eu acho que tem brinquedos e brinquedos eletrônicos, sabe? Alguns são bem interessantes. Por exemplo, eu estava com a minha enteada aprendendo a tocar guitarra. Talvez fosse mais interessante aprender a tocar no instrumento em si, não sei. Mas é válido. Agora, a Susan Linn [psicóloga norte-americana] fala bastante do lado negativo de brinquedos eletrônicos, principalmente da violência nos jogos de videogame. Mais da metade dos jogos eletrônicos são extremamente violentos e não são adequados para as crianças. Outra questão são os estereótipos desses jogos, que são passados de maneira deturpada. E há outros brinquedos eletrônicos que se limitam a fazer apenas aquilo, como ter uma boneca que fala, que chora para trocar fralda. Bom, a historinha já está dada. É um brinquedo que só tem uma função e não estimula a criança a criar, a fantasiar.Você está falando de brinquedos estruturados. Qual é a função deles?A função do brinquedo estruturado é fazer com que a criança possa imitar o mundo. É brincar de tudo que está aí. E é muito importante. E uma boneca como a Barbie?A Barbie já vem como a boneca que todo mundo quer, a que é certa, a que é bonita. Ela já vem com um monte de carimbos. Precisa ser loira, com cabelo comprido, com aquele corpo. Então, a criança brinca com aquela boneca que já vem com um ideal de beleza. É meio complicado. Até acho que é possível brincar de forma criativa com a Barbie, o que eu acho ruim são os valores que ela passa. É a indústria da Barbie. Existe um discurso hoje de que a infância está mais curta. O que você acha disso?Acho que se encurtamos a infância, temos consumidores mais rapidamente. É simples assim. Esse é o discurso de quem quer ver a criança, desde muito pequena, comprando um monte de produtos. E a criança ainda não está formada. Ela não consegue pensar como nós, adultos. Por mais estimulada que ela seja, por mais genial que a criança seja, ela não está com o cérebro formado. Uma criança aprende muito mais rápido que um adulto? Aprende. Isso tudo nós sabemos. Mas ter essas funções que nós temos ela só vai ter quando for adulta. Quais as conseqüências de pular etapas da infância?A criança não consegue ser um ser humano completo. Não brincar o quanto deveria brincar, não vivenciar o que deveria vivenciar, dificulta o desenvolvimento das capacidades de um adulto saudável.Existe uma linha de pensamento de que a infância é um conceito. Você concorda?Não. Depende de como se lê a infância. Se pensarmos que a criança precisa de um amparo, que não se desenvolve sozinha, que precisa sempre do adulto por perto, que o cérebro dela ainda não está formado, assim como o corpo também não está formado, é claro que isso não é apenas um conceito construído. Infância é infância. É aquele período da vida em que ainda não temos todas as capacidades e que precisamos da ajuda do adulto. E é por isso que o Estado assegura todos os direitos da criança. Com relação às políticas públicas, como assegurar à criança o direito que ela tem de brincar? No ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente], há leis relacionadas a isso. E os próprios parâmetros curriculares contemplam a importância do brincar para cada etapa do desenvolvimento. Então, o brincar tem de estar inserido em qualquer processo de aprendizado e isso é lei. Mas existe uma discussão, porque cada vez mais estão encurtando os recreios, como se não fosse importante o brincar. Existe um movimento grande de que o brincar é importante, mas é muito fácil para o professor esquecer. E eu nem culpo o professor, porque mesmo sabendo da importância do brincar, ele fica tão preocupado com tudo o que precisa cumprir naquele ano, que é fácil esquecer o brincar. Acho que é mais um alerta. E por que esse tempo de brincar tem sido diminuído? É a pressão do mundo que a gente vive hoje. A visão de que é tudo rápido, de que tem muita informação e de que precisamos dar conta de tudo. Antes era mais fácil ter tempo para brincar. Esse fenômeno tem a ver com o mundo globalizado, com o mundo muito mais competitivo. Se a gente for ver as crianças que tiveram chance, no passado, de ter uma infância saudável, acabaram se tornando adultos muito mais bem sucedidos na vida.
(Extraído do site: http://www.alana.org.br/CriancaConsumo/NoticiaIntegra.aspx?id=6432&origem=23)